Olá, leitora. Olá, leitor. Tudo bem?
A escritora brasileira Elvira Vigna morreu há seis anos, em uma tarde de julho. Um ano antes, em 2016, ela havia lançado seu último romance, cujo título mexeu com o mercado editorial, com a imprensa especializada e com seus leitores: Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. Este foi o primeiro livro dela que eu li. Vamos falar sobre ele.
Ela também foi jornalista, ilustradora, tradutora, artista plástica e crítica de arte. Formou-se em Literatura pela Universidade de Nancy, na França, e fez Mestrado em Comunicação pela UFRJ, no Rio de Janeiro. Morou na França e nos EUA, trabalhou em vários jornais, fundou uma editora, editou uma revista, casou-se, teve filhos. Tudo isso enquanto escrevia 10 romances, 12 livros infantis e juvenis e muitos contos.
Somou vários livros e prêmios literários importantes – foi vencedora do Oceanos; recebeu o Jabuti duas vezes, um deles como ilustradora; o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras; e o Prêmio Clarice Lispector, concedido postumamente, em 2019, entre outros.
O mais engraçado é que ela nunca se reconheceu como escritora, sempre se colocava como jornalista. “Não sou escritora, eu escrevo, é diferente”, ela disse em uma entrevista. Em outras afirmou categoricamente “Entrei na Literatura pelas portas do fundo, não queria isso”. Uma coisa é fato: Elvira Vigna foi muito importante para a Literatura brasileira contemporânea.
Palimpsesto
A primeira coisa que fiz ao conhecer esse livro de Elvira Vigna foi, obviamente, procurar um dicionário para descobrir o significado da palavra palimpsesto. Vou facilitar para você: “subs. masc. Papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado, para dar lugar a outro”. Ela mesmo explicou em entrevista por que utilizou a palavra palimpsesto no contexto deste livro:
“Essa coisa raspada para ser reutilizada é uma figura que Freud usou muito, memória que não se esgota, porque mesmo que você apague, tem sempre algo que está por baixo, que ressurge”.
Dito isso, você vai concordar comigo que o título Como se estivéssemos em palimpsesto de putas faz todo sentido, embora não seja um livro sobre prostitutas.
Com sua habitual característica narrativa, de frases curtas e densas, Elvira nos traz a história de dois estranhos, que ficam juntos por acaso em uma sala – ele, João, contratado para informatizar uma empresa falida; ela, uma designer em busca de trabalho, que será a narradora do livro, que não terá nome (assim como as narradoras de outros livros da autora). Acabam se encontrando frequentemente e, dia após dia, ele relata seus encontros frequentes com prostitutas, mesmo quando ainda era casado.
Para começar, ele deduz que ela é lésbica pela simples razão de que ela divide apartamento com uma moça. Conclui também que ela não se importará de ouvir as suas histórias com prostitutas porque a moça com quem ela divide sua casa é uma garota de programa. Simples assim. Simplicidade burra ou pretenciosa, ou os dois, eu diria. Ela, por sua vez, mais ouve do que fala (e vai nos narrar tudo), enquanto preenche com sua imaginação as várias lacunas das histórias que ele conta.
Impossível não ficar irritada com João e suas histórias bobas, e acredito que Elvira Vigna mostra o que quer com este livro: a maneira como João Bobo dá importância a si próprio e a suas ações, sem sequer reconhecer que a pessoa à sua frente está exausta de ser sua ouvinte. Ele continua contando uma história em cima da outra, sempre sobre a mesma coisa, como se apagasse a anterior para deixar anotada a próxima, que será apagada na sequência, uma encoberta pela outra e todas apagadas pela pequenez de João. Bingo: Palimpsesto!
Enfim, a invisibilidade da mulher e a insensibilidade do homem ficam tão claras ali que chega a dar raiva. Os fracassos e a fragilidade das relações vão sendo colocados à mesa em um texto que, feito teia de aranha, vai envolvendo sua presa, no caso, seus leitores.
Foi o que deu para fazer
Confesso que foi mais fácil ler o Palimpsesto do que O que deu para fazer em matéria de amor, outro livro de Elvira Vigna que escolhi pelo título, porque esse título é muito lindo. Eu estava ainda impactada pela leitura do primeiro, então fui ler este, lançado anos antes, em 2012.
Aqui também Elvira nos coloca numa narrativa forte, de frases curtas, com nuances intrincadas em duas histórias. A narradora deste livro – que também não tem nome – se debruçada sobre a vida de duas pessoas que já morreram, enquanto arruma um apartamento para venda. Precisa jogar coisas fora, enquanto pensa no que fará quando acabar aquela tarefa.
Então se propõe a configurar a vida das duas pessoas que viveram naquele apartamento como sendo uma história de amor, numa tentativa de fazer a mesma coisa com sua própria vida em comum com Roger, que já dura décadas. Ao unir as duas histórias e reviver ou inventar o que aconteceu com Rose e Arno, os falecidos, a narradora procura entender o que acontece com ela própria. Mais uma narrativa complexa, mais vidas intrincadas. Mais Elvira Vigna.
Outros títulos
“Meus livros são sobre morte, solidão, vazio, são todos iguais, mas são todos engraçados, eu pelo menos acho”, ela disse em uma entrevista. E assim, foi escrevendo ao longo dos anos livros com um critério para suas temáticas: “tudo o que escrevo já aconteceu. Eu não invento uma vírgula, são histórias que eu vivi, testemunhei, ou soube, nada é ficção”, ela repetiu várias vezes.
Seguindo este propósito, ela publicou para adultos Sete anos e um dia, A um passo de Eldorado, O assassinato de Bebê Martê, Às seis em ponto, Coisas que os homens não entendem, Deixei ele lá e vim, Nada a dizer e Por escrito, além dos que citei acima.
Entrevistas
Então comecei a ouvir as entrevistas que ela dava. Em algumas delas, observei um jeito calmo, baixo e até doce de falar com os entrevistadores. Assisti também a entrevistas em que ela estava muito solta, fazendo graça nas suas respostas. Me encantei com ela em todas elas.
E, como dizia minha mãe, aí tinha brasa escondida. Em alguns momentos ela pega o entrevistador ou entrevistadora de jeito, ainda muito calma e segura, com voz baixa e até doce, porém metálica (dá para ser doce e metálica?) e pergunta: “o que você quer dizer com isso?” Ou então “Ah, não, você não vai pegar nessa”. Em outro momento, ela diz “eu sou um doce, mas dizem que sou mau humorada”. Mais transparente impossível.
Para encerrar
Acredito realmente que toda leitora e leitor deveria conhecer Elvira Vigna. Por isso, te convido a entrar nas redes e procurar por vídeos com entrevistas dela, uma das vantagens que a Internet nos oferece fácil, fácil. Vale muito a pena ouvi-la.
Quero falar e ler muito mais de Elvira Vigna, quanto mais eu a leio, mais preciso ler. E você? Conto com sua ajuda para divulgar esta News.
Ah, e o recado de sempre: te espero em minhas redes sociais.
linktr.ee/escritoravanessameriqui
Até a semana que vem.
Nunca li Elvira Vigna, mas sua postagem alcançou o objetivo, ou pelo menos o objetivo indireto, de provocar desejo de conhecer a autora. Os títulos me são familiares e já despertavam minha curiosidade. O que fica claro quando você traz também esses dados sobre as entrevistas é o quanto a ficcionista performa conscientemente quando está falando sobre si e sobre seus textos. Ela está ciente de que cada palavra e gesto, o discurso como um todo, será dissecado junto com sua obra.
Enfim, mais dois títulos para minha lista de leituras. Obrigada, Vanessa.
Palimpsesto "Essa coisa raspada para ser reutilizada é uma figura que Freud usou muito, memória que não se esgota, porque mesmo que você apague, tem sempre algo que está por baixo, que ressurge”. Muito interessante. Conheci o termo através de Freud, no qual, a palavra utilizada na teoria pra mim representa tanto de sua genialidade, não basta apagar, a memória anímica... Sempre tratará de lembrar.
Amei suas curiosidades com títulos, livros e sua busca de conhecimento. Você prá mim é uma leitora e escritora sagaz, se me permite dizer... E através de suas pesquisas, nós encanta com tantos significados ou ausência deles que encontra. No caso mencionado, João parece ausente de significados, e ao mesmo tempo... Repleto deles.
Obrigada querida,
Assim como acredito muito no termo utilizado por Freud, acabo de descobrir da autora, que pela tua narrativa, de forma aparentemente despretensiosa, narra em sua obra, muito do universo masculino e feminino. Desperta interesse sua indicação e reconhecimento pela autora.
Beijo