Ruth Guimarães
Romancista, contista, cronista, poeta, jornalista, tradutora, pesquisadora e muito mais...
Olá, leitora. Olá, leitor. Tudo bem?
Foi num dia 13 de junho, lá em 1920, que nasceu Ruth Guimarães. Dia de Santo Antônio, de umas das festas mais alegres da igreja e do folclore brasileiro. Acredito tenha sido uma anunciação a pequena Ruth vir à luz neste dia, mas o fato é que ela foi uma das grandes estudiosas de nosso folclore e importante pesquisadora da literatura oral no Brasil.
E não foi só isso, foi também romancista, contista, cronista, poeta, jornalista e tradutora. E como se fosse pouco, lecionou Língua Portuguesa por mais de 30 anos em escolas da rede pública de São Paulo. Enfrentou pobreza, preconceito, racismo. “Mulher, negra, pobre e caipira – eis as minhas credenciais”, foi assim que ela se apresentou em uma Bienal de Literatura, em 1983. Mas o Brasil já sabia que ela era muito mais do que isso.
Ruth passou a infância na fazenda Campestre, que o pai administrava, localizada no sul de Minas Gerais. Ouviu ali muitas histórias com as famílias de peões e colonos com quem conviveu. Com a avó, aprendeu as tradições dos indígenas e dos negros. Astuta e intuitiva, sabia que tudo isso junto compunha um manancial da cultura ancestral brasileira, que ela precisava colocar no papel. Menina ainda, já publicava seus primeiros versos nos jornais de Cachoeira Paulista, onde nasceu.
Aos dezoito anos, veio para São Paulo, ingressou na USP, onde concluiu os cursos de Filosofia e de Letras Clássicas. Cursou também Folclore e Estética. Foi em São Paulo que decidiu recontar as histórias de infância, já certa de que tinha em mãos preciosidades da tradição oral.
Passou a trabalhar como jornalista, colaborando na imprensa paulista e carioca, escrevendo crônicas e críticas literárias para o Correio Paulistano, A Gazeta, Diário de São Paulo, Folha de Manhã e Folha de São Paulo. Mas já começara a escrever a obra que lhe daria reconhecimento.
O primeiro romance de Ruth Guimarães, aclamado desde o seu lançamento, foi publicado em 1946. À esquerda, em sua primeira edição, pela Editora Globo e, à direita, a mais recente, pela Editora 34.
Água Funda
Assim nasceu seu primeiro romance Água Funda. Sim, foi como romancista que obteve projeção nacional, aos 26 anos, tornando-se uma das primeiras escritoras negras a ocupar espaço no cenário da literatura brasileira, saudada como grande autora por vários críticos e escritores, como Mário de Andrade, Antônio Cândido, Érico Veríssimo e Edgard Cavalheiro.
O sucesso com Água Funda foi imediato, publicado em 1946, mesmo ano de lançamento de Sagarana, de Guimarães Rosa. O que foi um presente para a nossa literatura: enquanto Rosa aproveitou a riqueza e a plasticidade da fala sertaneja para inventar um léxico novo, entre o popular e o erudito, Ruth trouxe a reconstituição da linguagem caipira de forma original, com uma prosa ágil e fluida, permeada de ditos populares e causos marcados pela superstição e pelo fatalismo, como ela conheceu em sua infância passada no Vale do Paraíba e Sul de Minas.
Água Funda se passa em um universo de uma comunidade rural na Serra da Mantiqueira, entrelaçando diferentes contextos, personagens e tempo, que vai da época da escravidão até os anos 1930, nos quais a autora, dirão os estudiosos, antecipa em certos aspectos o realismo mágico de Juan Rulfo e Gabriel García Márquez.
“A gente passa nesta vida como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada. E quando alguém mexe com varejão no lodo e turva a correnteza, isso também não tem importância. Água vem, água vai, fica tudo no mesmo outra vez.” (trecho de Água Funda)
Este seu segundo livro, lançado em 1950, trouxe ainda mais prestígio a Ruth Guimarães, pela riqueza de sua pesquisa folclórica.
Os filhos do Medo
Estudiosa, buscou o folclore na riqueza dos contos populares, reunindo histórias de assombração e de criaturas como o saci, a mula sem cabeça e o lobisomem. Segundo ela, o nosso caboclo é filho do medo e foi o medo que criou as sociedades primitivas. Juntou então os causos que mais metiam medo no homem rural, recolhidos durante as décadas de 1930 e 1940, e foi procurar Mário de Andrade.
O mestre a recebeu, elogiou e orientou-a nas técnicas de pesquisa folclórica, entre 1942 e 1944. E assim, nasceu Os filhos do medo, livro lançado em 1950. Mário não chegou a vê-lo pronto, porque morreu em 1945, mas ela sempre ressaltou que o escritor foi o grande responsável por apresentá-la ao melhor do folclore brasileiro.
A publicação rendeu a Ruth Guimarães um verbete na Enciclópédie Française de la Pléiade, publicada pela Editora Gallimard, fazendo dela, à época, a única escritora latino-americana a receber esta distinção. Foi também em Os filhos do medo que ela anunciou seu encontro com o Saci, que a acompanharia por toda a vida.
Eu mesma conheci a professora Ruth Guimarães contando histórias de Saci e me encantei ao ouvi-la, já bem senhorinha, rir das danadices dele. Costumava dizer: “Folclore não se ensina, vivencia-se”.
“Diz-se que, quando está ventando muito, sai vira-virando num pé só. Já viram como o vento parece assobiar nos redemoinhos? Pois é o saci que assobia”. (trecho de Os filhos do medo).
Ela escreveu mais de 50 obras entre ensaios, romances, crônicas, contos, poemas e reportagens (Foto: Arquivo pessoal)
Outras obras
Jornalista, pesquisadora, autora reconhecida e professora, continuou a reunir contos populares por toda a sua vida, o que lhe permitiu publicar ainda Lendas e Fábulas do Brasil, Histórias de Onça, Histórias de Jabuti, Contos de Cidadezinha e o destacado Calidoscópio - A saga de Pedro Malasartes, resultado de pesquisas de quase uma década, em cidades de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, sobre esse polêmico herói brasileiro.
Por conta de seu centenário, comemorado em 2020, foram lançadas suas últimas obras, todos frutos de incansáveis pesquisas, quando ela tinha mais de 60 anos: Contos Negros, Contos Índios e Contos do céu e da terra, editados por seu filho Joaquim Maria Botelho, publicados pela Editora Faro. Joaquim e a irmã Júnia publicaram também “Memórias da Casa Velha – Biografia e legado de Ruth Guimarães”.
E, se de um lado, ela nos trouxe o popular, o regional e o caboclo, de outro nos apresentou toda a sua erudição, com tradução de grandes clássicos da literatura universal. Ruth Guimarães, por exemplo, foi autora do Dicionário da Mitologia Grega, publicado pela Cultrix.
E traduziu Balzac, Daudet, Apuleio e Dostoievski, este último seu preferido, talvez porque ela enxergava nos personagens do escritor russo o nosso empobrecido povo, foco dos seus escritos por aqui. Em um dos trechos do seu livro Contos de cidadezinha Ruth se colocou:
“Escrevo para que, afinal? Para obter honra e glória? Para poder dizer tudo o que penso? Ah! Eu conto histórias para quem nada exige e para quem nada tem. Para aqueles que conheço: os ingênuos, os pobres, os ignaros, sem erudição nem filosofias. Sou um deles. Participo do seu mistério. Essa é a única humanidade disponível para mim.” (Trecho de Contos de cidadezinha).
Jovem ainda, casou-se com o primo Zizinho, grande amor de sua vida, com quem teve nove filhos, cuidou muito de todos eles — oito nasceram com problemas de saúde, sendo que três eram portadores de uma doença genética degenerativa e morreram cedo. Ficou viúva também. Sempre foi o sustento da casa e, contam seus biógrafos, que ela se dedicou mais à família do que à Literatura e à carreira.
Dá para acreditar? Em momentos de dor, sentava e escrevia. “Minha máquina de escrever é minha arma”, repetia. Ruth Guimarães morreu em maio de 2014.
Para encerrar
A professora
Era aula de leitura. Os alunos deveriam ler um trecho selecionado que a professora discutiria em seguida. Todos abriram seus livros e se debruçaram sobre o texto. A classe estava em silêncio. A professora passeou pelos corredores entre as fileiras de carteiras e parou ao lado de um aluno.
– O que o senhor está lendo aí?
Não havia como esconder. Aberto dentro do livro, o gibi da Turma da Mônica. O garoto tentou balbuciar alguma coisa, mas não lhe ocorria o que dizer.
Calmamente, a professora recomendou:
– Aproveite e aponte, no texto da sua revista, dez pronomes pessoais do caso oblíquo e dez pronomes pessoais do caso reto.
E, sem censurar o aluno, retomou calmamente a caminhada pela sala.
Esse depoimento foi dado pelo aluno do texto, hoje um bem-sucedido professor de história, na cidade de Cachoeira Paulista. A professora Ruth Guimarães foi uma educadora que, assim como Paulo Freire, entendia que o aprendizado devia se dar em qualquer lugar, tanto na sala de aula quanto debaixo de uma mangueira.
Agora me diga se não vale a pena a ler Ruth Guimarães?
Acredito que sim, por isso, te convido a divulgar esta minha News, para que mais leitores possam chegar a esta grande escritora brasileira.
É só repassar o link e convidar amigas e amigos lerem, a se inscreverem e divulgarem.
Te convido também para me acompanhar nas mídias sociais.
linktr.ee/escritoravanessameriqui
Te espero na próxima semana
Abração
Obrigada por essa edição! Me emocionei muito 💛
Van, a Ruth Guimarães... indescritíveis palavras para adjetivar tão preciosa escritora. Só tenho um dela, que comprei na casa tombada sobre lendas do folclore... Que riqueza,
Sabe enquanto você leu quase tudo dela, eu garimpo neste livro... Sou leitora muito modesta diante da vastidão de teu conhecimento, mas... Prá mim, você apresenta na sua news o melhor que existe da literatura feminina... Obrigada