Olá, leitora, olá leitor. Tudo bem?
Sim, Marina Colasanti partiu. Fez sua passagem neste dia 28, pela manhã. E usei uma frase dela como intertítulo, extraída da crônica “Eu sei, mas não devia”, para dizer que vai ser difícil me acostumar com a ausência dela. Para mim, a emoção que causa ao nos levar para um outro tempo e outro espaço, de forma mágica a cada texto, é tão arrebatadora, que é impossível não se encantar. Impossível se acostumar com a ideia de que ninguém mais escreverá como ela.
Por essa razão, estou substituindo essa newsletter que já estava pronta (eu falava de autoras de HQ no Brasil, já que esta semana se comemora o Dia Nacional das Histórias em Quadrinhos), para falar mais uma vez de Marina Colasanti.
Eu a conheci pessoalmente em uma Semana Literária em São Paulo, me apresentei como sua leitora e fã enlouquecida. Já conhecia muitos de seus textos e seu estilo marcante de ambientar as narrativas em tempos medievais, com aldeias, castelos, cavaleiros, camponeses, reis, princesas e rainhas; sua forma de lidar nas páginas de seus livros com o nosso imaginário em viagens inesquecíveis.
Por conta desse estilo, Colasanti era considerada a escritora brasileira dos contos de fada. Acredito que sua obra vá além, não se prende à principal característica desses contos, como o famoso “final feliz”. Muito pelo contrário.
Debaixo da camada da fantasia tão bem engendrada pela autora, há muito de nossa dura realidade contemporânea, muito das pequenas tragédias sofridas por protagonistas, muito de mulheres que se distanciam do sonho romântico e da espera por seu príncipe salvador, para ir em busca de seus próprios desejos, custe o que custar. É preciso ter olhos de ver e é isso que me emociona em sua obra.
Quando a encontrei naquele evento literário, disse-lhe que eu tinha vários contos preferidos de sua autoria, mas um em particular sempre mexia demais comigo. Eu me referia à A Moça Tecelã, que abre o livro Doze reis e a moça no labirinto do vento (Global, 1982), que ouvi pela primeira vez na voz da grande contadora de histórias, mestre e amiga Ana Luiza Lacombe.
Para mim, não se trata apenas de um conto, e sim de algo sublime. Um conto marcou uma fase muito intensa da minha vida. Há um compasso no conto, fazendo com que cada uma das palavras seja colocada no ritmo de um tear, o que te coloca frente a frente com a tecelã, que na história cria uma vida, para depois fazê-la desaparecer, por respeito às próprias vontades. Delicado, profundo, rico em metáforas e amplos significados, como tudo que Colasanti escreveu.
Contar Colasanti
Também sou contadora de histórias, ofício que amo. Para um contador de histórias é praticamente impossível dimensionar a quantidade de contos lidos ou preparados no decorrer do trabalho. E quando este ofício dura anos, como no meu caso, as histórias vêm e vão, muitas marcam profundamente, outras nem tanto. Dois outros contos de Marina Colasanti marcaram demais a minha vida, esses sim contados por mim, com a mesma paixão que tenho por A moça tecelã.
Um deles é As notícias e o mel, último conto do livro Uma ideia toda azul (Global, 1978), uma delicada e potente metáfora sobre escolhas. O outro chama-se O moço que não tinha nome, que faz parte do livro Longe como o meu querer (Ática, 1997), para mim uma das mais lindas histórias de amor que já ouvi.
O protagonista, ao percorrer o mundo em busca de sua identidade, nos carrega ao mais profundo encontro com o eu interno, em uma viagem sobre o autoconhecimento e amor, que a autora nos entrega com maestria, magia e fantasia. Vale a pena ler mil vezes mil vezes, coisa que já venho fazendo ao longo de muitos anos.
Tecelã das palavras
A biografia de Marina Colasanti parece ser outro conto. Nasceu em 26 de setembro de 1937, na cidade de Asmara, capital da Eritreia. Passou parte da infância na Líbia e na Itália. E antes de completar dez anos, sua família mudou-se para o Brasil, fixando residência no Rio de Janeiro. Ela nasceu em uma família que contava com escritores, atores, crítico de arte e até uma cantora lírica, o que influenciou enormemente sua vida. Sua primeira formação foi de artista plástica.
Mas foi como jornalista que começou a trabalhar, no Jornal do Brasil, onde ficou por 11 anos e em diversas funções: redatora, repórter, editora, colunista e cronista. Depois, transferiu-se para a Editora Abril, em São Paulo, onde trabalhou por 18 anos.
Sempre cercada pela arte, a sua formação como artista plástica possibilitou que ela mesma pudesse, mais tarde, ilustrar suas obras. O livro A mão na massa é um exemplo desse lindo casamento de texto e ilustrações produzidos por esta grande artista.
Livros e prêmios
Em 1968, lançou seu primeiro livro e nunca mais parou. Publicou mais de 70 obras, entre contos, poesia, prosa, literatura infantil e infanto-juvenil. Assim como ensaios sobre temas como literatura, o feminino, a arte e problemas sociais. Tornou-se tradutora, trazendo para o português importantes autores da literatura universal.
Quanto aos prêmios literários, só o Jabuti, os recebeu em diversas edições (1993), (1994), (1997), (2010), (2011), e, no ano passado, quando foi homenageada como Personalidade Literária do Ano. Ainda em 2024, foi finalista do Prêmio Hans C.Andersen, considerado o Nobel da literatura infantil e juvenil.
Em 2023, já havia recebido o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras. A homenagem destacou o conjunto de sua obra, descrita como vasta, atemporal e marcante.
A lista é grande: recebeu os Prêmios APCA e FLINJ (1979), o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional (2009), o Oceanos (à época, em 2011, chamava-se Portugal Telecom de Literatura), o Iberoamericano SM de Literatura Infantil y Juvenil (2017), para citar mais alguns.
Como um cavalo
Há algum tempo, caiu-me às mãos um pequeno livro da Editora Pulo do Gato, sobre uma conferência realizada por Marina Colasanti no Simpósio del Libro Infantil y Juvenil Brasil-Colômbia, promovida pela Associação Colombiana de Leitura e Escrita (Asolectura), em 2007. Publicado em 2012, com o título Como se fizesse um cavalo, Colasanti nos encanta ao explicar a forma que encontrou para sua autodefinição como leitora, em um texto curioso e poético.
Para encerrar
Mais palavras de Marina Colasanti. Essas são as que encerram a crônica que citei “Eu sei, mas não devia”:
“A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá... A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma”.
Lendo seu texto, lágrimas, emoção pura ao me lembrar de sua apresentação para mim, Marina Colassanti..."O moço que não tinha nome" daí o conto escolhido por mim. Para contar e recontar, " As notícias e o mel"... minha trajetória, minhas escolhas, veja a potência de um conto, no imaginário e inconsciente de uma pessoa...
Van, você dignamente contou os contos dela, e ela... também a conheci, leio e releio, é impossível seguir sem ler o que escreveu, seu belíssimo texto, quando me deparei com "para encerrar " foi dando um aperto, não se encerra... pra mim e para o mundo a Autora Marina Colassanti será eterna, e para mim, você que me comoveu tanto com um conto narrado dela. Será eterna... na mudança de trajetória em minha vida. O reencontro com a arte, resgate da infância.
Obrigada por belíssimo texto.
Nossa! Que texto lindo, Vanessa! Sensível. Me deu até vontade de ler todos os contos que você citou. Amei! Gratidão por compartilhar.