Olá, leitora. Olá, leitor. Tudo bem?
Quando escolho um tema para minha News nunca sei o que pode acontecer. É sempre bom publicar um texto, entregá-lo ao mundo e deixá-lo percorrer seus caminhos, seus encontros, suas leituras e leitores. E me deparar com comentários, deliciosas surpresas, como a que aconteceu há pouco tempo.
Foi quando publiquei uma edição sobre poesia, destacando a querida Luci Colin. No mesmo dia, recebi várias mensagens, como sempre acontece, mas duas foram muito carinhosas e me surpreenderam. A primeira da própria Luci! Me senti no céu – de repente, estava trocando mensagens com esse talento, essa potência, uma das mais importantes vozes da nossa Literatura contemporânea, o que para mim foi um privilégio.
A segunda mensagem veio por email e igualmente me encheu de alegria, foi de uma escritora por quem também tenho profunda admiração: Maria José Silveira, que dizia ter gostado muito do meu texto sobre Collin e por tê-la citado nele (sim, reproduzi um trecho muito bem-humorado que ela escrevera para a orelha de um livro da poeta, A árvore todas).
Maria José Silveira, ou Zezé, como ela disse que gosta de ser chamada, é escritora, editora e tradutora (foto: divulgação).
Confesso que minhas mãos tremeram no momento de digitar a resposta. Era Maria José Silveira, autora de livros que li e reli. Me apresentei, falando da admiração que sentia por ela e por tudo que escrevia. Perguntei se poderia dedicar uma newsletter para ela. E a resposta veio rápida: “Seria bom demais, Vanessa. Ficarei feliz. Beijos”.
Bem, sou do tipo “fã de carteirinha”, “macaca de auditório”, daquelas que flutua quando recebem um carinho desses. Corri para falar com Luci Collin novamente (já estava me sentindo toda-toda nesta troca de mensagens) e contei dos livros de Maria José que havia lido. Ela respondeu “A Zezé é maravilhosa. Já leu o mais recente dela?”
farejador de águas
Não, eu não tinha lido farejador de águas (em letras minúsculas mesmo), lançado no ano passado, pela Editora Instante. E respondi que precisava ler urgentemente, antes de escrever esta news.
Dela eu já lera A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, seu primeiro romance, Maria Altamira e Aqui. Neste lugar. Agora estou terminando Pauliceia de mil dentes. Todos me impressionaram muito, mas falarei sobre eles depois, porque farejador de águas ainda pulsa fortemente em meu peito.
Nele, mais uma vez, a autora traz fatos históricos para permear suas tramas. Em farejador de águas, José Sussuarino, o Zé Minino, e Maria Branca, a Anja, se conhecem ao seguir a Coluna Prestes por longos caminhos. O amor que nasce entre eles atravessará quase um século de história e o leitor percorrerá, junto com o casal e seus filhos, os anos do governo Vargas, a Marcha para o Oeste, a ditadura militar, a guerrilha do Araguaia, a urbanização, o desenvolvimento da política agrícola e tudo mais que vai matando o cerrado pouco a pouco.
A autora nos traz fatos para dar protagonismo também a esse cerrado e ao que sobra dele, impactado pela crueldade do modelo desenvolvimentista que ela descreve. Minino, que conhecia o cheiro e a proximidade de tantas nascentes de rios, envelhecerá sentindo suas águas secarem, vendo a exuberância rasteira, a vegetação de raízes profundas e as tradições locais desaparecerem com a imposição do vasto plantio de soja, da pecuária e da urbanização.
Zé Minino e Anja viverão muitos anos na inquietude desses acontecimentos, querendo voltar para luta, semente cultivada em suas almas desde os tempos da Coluna Prestes, “Tô parado demais, tá difícil lidar com a estreiteza desse lugar”, dizia ele. “Vai, Zé, eu fico com os minino e te espero. Só não se demore muito”, ela respondia.
Como em outras obras que já li de Maria José, a autora nos traz aqui mulheres fortes, mesmo com o protagonismo do menino-homem que fareja águas. Maria Branca lhe dará o rumo. A mulher (cujas reflexões em primeira pessoa o leitor acompanhará) vai se juntar à velha indígena que criou o garoto antes de ele sair atrás da Coluna Prestes. Com ela virão suas filhas, suas vizinhas, Santa Dica e até sua antagonista, dona Francisca, figuras femininas, todas fortes, representações arquetípicas inesquecíveis, como a velha do mato que segue Zé Minino em sua jornada ao final do livro. São elas que nos atentam para que fatos do passado devem ser vistos com olhos no futuro.
farejador de águas é um livro imperdível, necessário, poético e lindo. Um daqueles que se lê muitas vezes e sempre descobrirá bonitezas nele.
A Mãe da Mãe de sua Mãe e suas Filhas
Na verdade, eu já conhecia o texto de Zezé (como ela gosta de ser chamada), com o delicioso A Mãe da Mãe de sua Mãe e suas Filhas, (Globo Livros). Foi o seu romance de estreia e pelo qual recebeu o Prêmio Revelação da APCA, em 2002. O livro foi relançado em edição ampliada em 2019, depois de ser editado, com sucesso, nos EUA e em vários países da Europa.
Adorei o título que, a meu ver, não poderia ser outro. A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas reconta a história do Brasil à luz da trajetória de uma linhagem de mulheres, começando com a de uma indígena, logo na chegada do explorador português ao Brasil; e se desenlaça por mais de quinhentos anos até chegar à sua última descendente, nascida no início do século XXI. São mulheres como Maria Cafuza, Guilhermina, Ana de Pádua, Jacira Antônia, Açucena Brasília, Diva Felícia e muitas outras mulheres, cujas origens remontam à mesma ancestral, Inaiá, que nasce no dia 22 de abril de 1500, no exato momento em que os portugueses invadem as praias brasileiras, na Bahia.
As mulheres de Maria José Silveira neste livro sobrevivem à exploração desenfreada do pau-brasil, da cana-de-açúcar e do ouro, à dominação e à opressão dos colonizadores, das ditaduras, como também de seus parceiros, maridos e amantes. A história do Brasil e de nossas mulheres vai sendo desfiada ao longo de suas desventuras. E isso Zezé faz como ninguém!
Impossível parar de ler, a cada capítulo você quer saber da próxima mãe, da próxima filha, em um contar que acaba sendo o de todas nós, nessa saborosa mistura de raças e culturas.
Maria Altamira
Tempos depois recebi o livro Maria Altamira (Editora Instante, 2021), finalista do Jabuti e Oceanos. Ele veio na caixa enviada pela AMORA – um clube de leitura e de assinatura que eu amo, o primeiro no País que dispõe apenas de obras escritas exclusivamente por mulheres. Voltei a pensar em A Mãe da Mãe de sua Mãe e suas Filhas porque, assim como o seu romance de estreia, este também traz uma poderosa história de mãe e filha. Alelí, a mãe, e Maria Altamira, a filha, terão suas vidas desencontradas desde o parto e as duas vão testemunhar situações de miséria, de devastação ambiental e injustiças, num enredo de tirar nosso fôlego.
Zezé, na live organizada por AMORA, nos contou que construiu a personagem Alelí a partir de sua vivência no Peru e pelos caminhos da América Latina (falo disso daqui a pouco). A personagem será a única sobrevivente de um terremoto que provoca o soterramento da cidade de Yungay, no Peru, onde perde os pais, os irmãos, o namorado e a filha. Em choque, parte sem rumo, percorrendo vários países da América do Sul. Numa das paradas, conhece Manuel Juruna, que se encanta com ela e a leva para sua aldeia, na Volta Grande do Xingu, no Pará.
Mais tarde, Manuel Juruna é encontrado morto, vítima de um pistoleiro contratado por madeireiros da região. De novo assolada por uma tragédia, Alelí, grávida, deixa a aldeia e chega à cidade de Altamira, onde é acolhida pela enfermeira Chica. Convencida de que traz má sorte a quem ama, a mãe abandona a recém-nascida, que recebe o nome de Maria Altamira, e retoma a estrada. Vale a pena acompanhar a peregrinação de Alelí por vários países, para qual a autora nos leva de forma mágica.
Maria Altamira, além do ótimo romance, tem edição primorosa e uma capa que fotografei para você. Ela se abre para nos mostrar a região do Xingu atravessada pelas protagonistas.
Anos depois, Maria Altamira acompanha com indignação e se contrapõe às obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que destruirá a vida de comunidades ribeirinhas e indígenas do rio Xingu. Muda-se para São Paulo em busca de oportunidades e vai morar num prédio ocupado no centro da cidade, onde abraça a causa dos sem-teto.
Para contar a história de Maria Altamira, a autora reuniu três tragédias, cada qual com sua dimensão: a avalanche que soterrou a cidade andina de Yungai, no Peru; a inundação provocada pela construção da usina de Belo Monte, na região do Rio Xingu e o cotidiano dos que não têm teto em São Paulo. Tem noção da enormidade de pesquisa que Maria José Silveira fez para escrever este livro? Cada página, cada acontecimento é de uma riqueza sem tamanho. Super recomendo. Ele deve ser lido e relido, pensado e repensado.
Tantos escritos…
Ok, esta news está longa e eu ainda gostaria de abordar outros livros da autora. Então vou falar dos que estão entre minhas leituras.
Começando por Aqui. Neste lugar. (Autêntica, 2022), que ela lançou entre Maria Altamira e farejador de águas. Foi uma surpresa, me deparei com uma distopia que reúne povos da floresta, figuras folclóricas, cenários que precedem as invasões europeias, na qual amazonas e guerreiros são personagens que dão vida às metáforas e arquétipos que Maria José Silveira tece, com elementos de magia, misticismo e humor. Muito bom encontrar também a dupla Macu e Naíma, que nos saúda numa clara homenagem a Mário de Andrade.
E estou terminando de ler Pauliceia de mil dentes (Editora Prumo, 2012), que se passa na São Paulo atual, cidade que a autora escolheu para viver. Como não poderia deixar de ser, ela traz uma cidade devoradora e um painel de personagens que vivem em circunstâncias completamente diferentes. A história acontece a partir da invasão a um famoso escritório de advocacia por um jovem de família tradicional paulista, que faz duas reféns: a ex-namorada, que o rejeitou, e a faxineira da firma. Os personagens se mostrarão ao longo dos capítulos, mas a jovem refém, protagonista do livro, é a única que não terá voz, o leitor saberá dela por meio dos olhares dos outros envolvidos em sua história.
Sobre Zezé
Aí eu penso novamente no talento de Maria José Silveira, que ora transita no cerrado, ora na loucura paulistana, ora na América Latina, na Amazônia, no Alto Xingu, sempre contando boas histórias, sempre nos envolvendo com suas narrativas, nos emocionando com suas palavras, mesmo que seja para escancarar as feridas abertas no Brasil e na América Latina, ou mostrar a dureza do viver de homens e mulheres, numa complexidade que ela tão bem enxerga e traduz em sua obra.
Que privilégio ter Maria José Silveira, a Zezé, entre nós.
Falei de seus livros, agora falo da escritora. Ela nasceu em Jaraguá, Goiás (olha o cerrado aí) e mora em São Paulo há anos. É formada em Comunicação e em Antropologia; é mestre em Ciências Políticas pela USP e doutora em Antropologia pela Universid de San Marcos, de Lima, no Peru. Além de escritora, é tradutora e editora. Casou-se com Felipe Lindoso e tem dois filhos. Ambos foram perseguidos pela ditadura militar e viveram como clandestinos de 1971 a 1973, quando se exilaram no Peru, de onde voltaram somente em 1976. Muito do que viu, conheceu e vivenciou, Zezé traz em suas narrativas.
É autora também de livros infantis, infanto-juvenis, de duas peças de teatro já encenadas, além de participar de várias coletâneas de contos. Escreve, há muito tempo, crônicas para o jornal O Popular, de Goiânia. E possui um blog, ao qual recomendo que você entre para conhecê-la melhor. Além dos livros, estão lá contos, crônicas, artigos e muita coisa boa. Você vai amar.
https://mariajosesilveira.wordpress.com/
Para encerrar
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Até logo mais
Vanessa, querida! Adorei! Publiquei no Facebook porque fiquei muito orgulhosa e muito contente. Leitora como você é que nos faz seguir em frente! Um beijo imenso!