Escritoras africanas: resistência, paixão e tradição
Você conhece a escrita da mulher africana?
Olá, leitora. Olá, leitor. Tudo bem com vocês?
Alguém aqui já leu escritoras africanas? De cara, posso te dizer que li títulos da nigeriana Chimamanda Nigozi Adichie (li Americanah, No seu pescoço e Ibisco roxo) e da moçambicana Paulina Shiziane, que esteve recentemente no Brasil (Niketche, O alegre canto da perdiz e Balada de amor ao vento). Gostei de todos os que li, essas autoras são fantásticas.
Mas só tive noção mesmo do que era a literatura produzida por mulheres africanas depois que fui apresentada a ela pelo escritor, professor e doutor em Teoria da Literatura, Celso Cisto, que coordenou o módulo Além do Cânone: outras literaturas africanas femininas, ministrado no âmbito da pós-graduação em Literatura Brasileira de Autoria Feminina, da qual faço parte.
Com paixão e maestria, o professor Celso Cisto nos apresentou poetas, contistas, cronistas e romancistas africanas, entre as quais eu conhecia apenas as que citei acima. Me envolvi profundamente com os poemas de Alda Lara (Angola), Conceição Lima (São Tomé e Príncipe), Odete Semedo (Guiné-Bissau), Hirundina Joshua (Moçambique), Ana Paula Tavares (Angola); com as crônicas de Vera Duarte (Cabo Verde) e também de Paula Tavares e com contos de Chiziane e Chimamanda. Celso Cisto nos indicou também romances da escritora tutsi de Ruanda, Scholastique Mukasonga, da nigeriana Buchi Emecheta, que eu ainda lerei, além de Chiziane e Chimamanda.
Poesia, memória e resistência
Ao me debruçar em cada um dos gêneros, fui sendo impactada pela força das palavras dessas mulheres, todas com grandes semelhanças em suas vidas e com o que suas obras representam para seu povo. Semelhanças bem cruéis, eu diria: seus países sofreram com a invasão europeia e tornaram-se colônia de Portugal – e depois da Inglaterra, no caso da Nigéria; Bélgica e Alemanha, no caso de Ruanda. Não bastasse a exploração do colonizador, todo o continente africano foi fortemente aviltado pela escravização e opressão. Os processos de independência em alguns casos duraram décadas de lutas sangrentas, além de guerras fraticidas que ocorreram depois. O que sobrou foi o renascimento e a reconstrução de nações extremamente subalternizadas e exploradas por séculos, com o consequente apagamento de suas tradições, culturas e costumes.
É sobre isso, mas com poesia, criatividade e imaginação, que falam as escritoras africanas. Elas trazem em suas palavras as consequências da exploração do colonizador, de governos opressivos, das lutas pela libertação, das guerras fraticidas, da falta de sentimento de pertença e da crueldade da escravização e subalternização. Trazem também a história de povos que, diferentemente de seus ancestrais, passaram a carregar em sua formação étnica e cultural os traços do branco colonizador e do africano, negro e escravizado.
E tem mais: por serem mulheres, enfrentaram toda a dificuldade provocada pelo silenciamento tangido especialmente em sociedades fortemente moldadas no patriarcado, como acontece em solo africano. Pauline Chiziane, por exemplo, foi a primeira mulher moçambicana a publicar um romance, isso há poucos anos atrás. Já falei dela aqui em outra newsletter.
O trabalho árduo e corajoso dessas escritoras, além resgatar a cultura, as tradições e as marcas identitárias de seus países, também traz a busca constante da valorização do papel da mulher.
Depois de ler essa minha descrição, parece tudo muito trágico, mas acredite, não é. Há tanta poesia e metáforas em seus textos, há tanta riqueza e conhecimento de suas tradições, que é impossível não se emocionar. É por isso que tudo que li me arrebatou. Eu queria contar dessas escritoras para vocês.
Ana Paula Tavares
Certamente gostaria de falar de todas aqui. Mas não de uma vez só. Esse texto ficaria enorme e acredito que o prazer maior é ler pequenas frases, trechos curtos de cada autora, como se fosse um bom vinho, ou um copo da água mais fresca e cristalina, ambos a serem degustados em pequenos goles. Por essa razão, escolhi falar de Ana Paula Tavares, porque esteve entre as poesias e crônicas que muito me emocionaram.
A escritora e historiadora nascida em Angola, Ana Paula Tavares, também é mestre em Literaturas Africanas.
“Uma mulher antiga tem um rio nas mãos e guarda-o como a aranha do deserto a sua preciosa gota”
Esta frase está no livro Um rio preso nas mãos, publicado aqui no Brasil pela Editora Kapulana, em 2019. Poucos foram editados no Brasil, entre poesia, crônicas e romances. Dela, li também alguns poemas de Amargos como os frutos, editado aqui pela Pallas, em 2019, que reúne vários livros de poesia dela, inclusive o premiado Dizes-me coisas amargas como os frutos. E li algumas crônicas de A cabeça de Salomé, este ainda não lançado no Brasil.
Estou encantada com esta escritora, que já revelou que sua obra traz influência de autores brasileiros, como Manuel Bandeira, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Mello Neto, e até de algumas músicas brasileiras. Eu particularmente encontrei em seus poemas um tanto da nossa Conceição Evaristo também, veja se concorda:
O CERCADO
De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó
Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado
De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias
Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado.
(do livro Amargos como os frutos)
Como eu disse, Amargos como os frutos foi lançado aqui no Brasil pela Editora Pallas. E tomo a liberdade de colocar aqui a resenha da editora, que contextualiza bem o que tentei falar sobre as escritoras africanas que citei:
“Durante os tempos das lutas pela libertação de Angola, uma significativa parcela dos poemas produzidos transformou-se em arma ideológica de combate ao colonialismo. A partir da independência, ao lado da literatura de exaltação nacional, marcada pelo discurso panfletário e anticolonialista, começaram a surgir novas vertentes poéticas que, sem negar a importância de um compromisso com as realidades nacionais, buscam em si outros ingredientes.
Paula Tavares é uma dessas escritoras que cedem sua voz para expressar, com rebeldia e ternura, o clamor amargo das mulheres encarceradas em seu próprio silêncio. Além dos efeitos das muitas décadas de guerras em Angola, as mulheres sofreram também no próprio corpo a opressão do machismo, natural depois de tanto tempo enraizado na cultura local.
A antologia poética Amargos como os frutos é a representação da voz feminina africana na sua individualidade, na sua feminilidade, na sua corporalidade. Palavras essenciais, intimistas e plurais, locais e universais, numa linguagem que registra e mistura crueldades e delicadezas”.
Para os domingos
A prosa de Ana Paula Tavares também me trouxe encantamento, tão repleta de metáforas e de referências de suas tradições. Li apaixonadamente várias vezes a crônica publicada em A cabeça de Salomé, chamada Receita para ultrapassar os domingos. Abaixo, trago um pequeno trecho, mas que já dá para perceber a maestria de sua linguagem poética:
RECEITA PARA ULTRAPASSAR OS DOMINGOS
Desce manso à cidade, na hora em que a noite indecisa se embrulha do terceiro pano e de joelhos compõe a cabeleira, retira do rosto os restos de luz e se recolhe tensa das horas por resolver. Não te deixes tentar pelas mãos de cacimbo que, de tão frescas, te poderão recolher, de novo, para o sítio dos sonhos onde as rosas de verdade nos podem explodir no peito.
A noite é enorme e hesita sempre na hora de partir. Os nossos fantasmas, lentos como cobras domésticas, gostam de se plantar – exatamente nesse momento – à beira da nossa condição frágil, rindo e à espera. Toda a gente sabe da sua paciência experimentada. Por isso acorda.
Sacode a esteira e enrola-a devagarinho. Arruma o quarto, varrendo as cinzas da véspera, e não te esqueças de guardar a última brasa para que possa ficar a arder o alecrim, o eucalipto (que ainda guardas de um outro tempo no Huambo), os cheiros misturados da avó Xiquinha e um pouco de açúcar mascavo. O fumo e o pequeno som das folhas a crepitar na pá de zinco farão mais leve a saudade.
Para encerrar
E aí, dá ou não dá um gostinho de quero mais? Trarei mais autoras africanas em novas edições da News, porque acredito que elas expressam o que nós, mulheres, leitoras e escritoras brasileiras também pensamos, falamos, desejamos. É a universalidade da Literatura e da alma feminina que tomam forma aqui.
Se você gostou, me ajude a divulgar esta News. Vamos espalhar pelo mundo a Literatura produzida por, para e sobre mulheres.
Para encerrar II – Prêmio Nobel de Literatura
Acaba de ser anunciado que o norueguês Jon Fosse recebeu o Prêmio Nobel de Literatura 2023. Parabéns a Fosse, mas a minha torcida era para a escritora e crítica literária chinesa Can Xue, de 70 anos, uma torcida um tanto óbvia, não é.
Vou pesquisar sobre ela, mas pelo que li, já posso dizer que gostei. Can Xue é pseudônimo de Deng Xiauohua. Ela escolheu seu pseudônimo porque ele pode ser interpretado como “a neve suja que resta do inverno” ou a “neve do pico da montanha quando todo o resto já derreteu”. Ou seja, resistência, persistência. E ela mesma disse que publicar seus primeiros livros com esse pseudônimo facilitou sua vida, já que ninguém saberia que era uma mulher por trás daquelas palavras. Dizer mais o quê depois disso...
Tchau e até a próxima.
Vamos nos falando pelas redes sociais. É só clicar aqui:
linktr.ee/escritoravanessameriqui
Vanessa... ficarei atenta na sua news... obrigada por tanta informação querida... ler suas páginas é ampliar o universo literário. Grata