Olá, leitora. Olá, leitor. Tudo bem?
Sim, vou falar novamente de Conceição Evaristo, uma das mais importantes escritoras brasileiras, a qual considero ter a sorte de ser contemporânea. Para mim, ela é mais que escritora, ela exerce um poder sagrado que generosamente distribui ao mundo por meio de suas palavras, tão impactantes quanto poéticas.
Impossível não falar dela hoje, não só pelo aniversário – ela completa 77 anos esta semana – mas também pela imagem que marcou o mundo literário no último sábado: a cidade de Paraty completamente abarrotada de pessoas atrás dela, lotação nas janelas e nas tradicionais ruas de pedras com um único objetivo: ver Conceição chegando à FLIP, passando sorridente por todos, acenando timidamente e, ainda assim, causando comoção.
Leitores do Brasil inteiro estavam lá para vê-la. O salão designado ficou pequeno para abrigar tanta gente e a organização do evento rapidamente tratou de arrumar outras salas, outros locais com caixas de som, para que admiradores, mesmo que não pudessem vê-la, conseguissem ao menos ouvi-la.
E esse ainda não era o evento de lançamento do seu novo livro, que aconteceria somente no domingo. Ela lançou na FLIP o livro Macabéa, Flor de Mulungu, pela Editora Oficina Raquel, a sua releitura de uma das mais emblemáticas e importantes obras de Clarice Lispector, A hora da estrela.
Ainda não li, mas já encomendei o meu exemplar. Quero muito saber deste texto e das belas ilustrações preparadas por Luciana Nabuco, com quem já tive aulas maravilhosas.
Se a Macabéa, nascida há quase 50 anos por obra de Lispector me emocionou profundamente, estou ansiosa para conhecer a Flor de Mulungu, de Evaristo. Clarice fala de uma Macabéa pobre, migrante nordestina, marcada por dores e silêncios, num total apagamento de sua vida. Conceição nos diz que a sua personagem evoca a ancestralidade de Macabéa (e de todas as Macabéas que ali habitam), para costurar uma trajetória em que “mulheres como Macabéa não morrem. Costumam ser porta-vozes de outras mulheres iguais a elas”. Quem conhece personagens criadas por Conceição Evaristo devem estar tão ansiosa quanto eu, para conhecer essa Flor de Mulungu.
“Não nasci rodeada de livros, nasci rodeada de palavras.”, disse Conceição Evaristo em uma entrevista. (foto:divulgação)
História de quem faz História
Quem conta história sempre tem história. Conceição faz história e a sua engrandece a Literatura brasileira. É claro que nem sempre foi assim. De origem muito humilde, nasceu e viveu até a década de 1970 na favela do Pindura Saia, em Belo Horizonte, dividindo a vida com uma família muito grande, sua mãe teve nove filhos. O padrasto e o tio eram pedreiros. Já as mulheres de sua vida - a mãe, a tia e quatro irmãs, carregando o estigma da subalternidade, só tinham um caminho à época. E é ela quem nos conta:
“Mãe lavadeira, tia lavadeira e ainda eficientes em todos os ramos dos serviços domésticos. Cozinhar, arrumar, passar, cuidar de crianças. Também eu, desde menina, aprendi a arte de cuidar do corpo do outro. Aos oito anos surgiu meu primeiro emprego doméstico e ao longo do tempo, outros foram acontecendo... Além disso, participava com minha mãe e tia, da lavagem, do apanhar e do entregar trouxas de roupas nas casas das patroas.”
Ela trabalhou como empregada doméstica até passar em um concurso público no Rio de Janeiro, em 1973, onde estudou e começou sua carreira no magistério como professora da rede pública de ensino. Graduou-se em Letras pela UFRJ, é Mestre em Literatura Brasileira pela PUC RJ e Doutora em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense.
A escritora criou o conceito de “escrevivência” para definir a sua escrita nascida do cotidiano, das lembranças e de experiências de vida dela e de outras mulheres, que já é objeto de estudo de muitos acadêmicos. É ela quem nos explica:
Também abriu A Casa da Escrevivência, um espaço cultural no Rio de Janeiro, na qual ela dispôs seus livros e acervo artístico, com objetivo de torná-lo um local para pesquisa sobre a literatura negra, além de um espaço para formação de leitores.
Livros e premiações
Depois de publicar seus primeiros contos e poesias na Série Cadernos Negros, na década de 1990, publicou seu primeiro livro, Ponciá Vicêncio, em 2003. Depois vieram Becos da Memória (2006), Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2011), Olhos D’água (2014), Histórias de Leves Enganos e Parecenças (2016), Poemas da recordação e outros movimentos (2021), Canção para ninar menino grande (2022), além de contribuições em antologias e ensaios.
Seus livros estão traduzidos para diversas línguas. Ela já foi premiada na França por seu livro Olhos D`água, publicado pela Éditions des Femmes, em 2020.
Falando em prêmios, Conceição Evaristo conquistou o Jabuti, em 2015, com Olhos d’água; recebeu, em 2017, o Prêmio Governo de Minas Gerais pelo conjunto de sua obra; foi homenageada como Personalidade Literária do Ano pelo Prêmio Jabuti, em 2019; e este ano recebeu o Prêmio Juca Pato como Intelectual do Ano, concedido pela União Brasileira de Escritores.
Pura poesia
Para mim, ler Conceição Evaristo é ter contato com um Brasil que nos assusta, mas é também ser embalada por um encantamento, que transborda de uma realidade relatada de forma tão cruel quanto poética.
Suas palavras não nos poupam, seus textos são riquíssimos retratos do cotidiano e da ancestralidade brasileira. Seus dramas são fortes, principalmente quando suas protagonistas são mulheres. Ler Conceição Evaristo, para mim, significa estar viva, de olhos abertos para o que já esteve aqui e para o que ainda vem pela frente. Tem gosto de memória, de respeito aos ancestrais, de chacoalhão no dia a dia. Veja se não tenho razão com o poema a seguir, que faz parte do livro Poemas da recordação e outros movimentos:
De mãe
O cuidado de minha poesia
aprendi foi de mãe,
mulher de pôr reparo nas coisas,
e de assuntar a vida.
A brandura de minha fala
na violência de meus ditos
ganhei de mãe,
mulher prenhe de dizeres,
fecundados na boca do mundo.
Foi de mãe todo o meu tesouro
veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água
do pranto criava consolo.
Foi de mãe esse meio riso
dado para esconder
alegria inteira
e essa fé desconfiada,
pois, quando se anda descalço
cada dedo olha a estrada.
Foi mãe que me descegou
para os cantos milagreiros da vida
apontando-me o fogo disfarçado
em cinzas e a agulha do
tempo movendo no palheiro.
Foi mãe que me fez sentir
as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou,
insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
da minha fala.
Para encerrar
Se eu sou fã, imagina o quanto me deliciei ao ler a frase do escritor português Valter Hugo Mãe, ao comentar o livro Histórias para ninar menino grande. Ele disse:
“Só de joelhos se lê Conceição Evaristo. Em prece. E e eu penso que desde a raiz do tempo se previa que Mestre Conceição Evaristo nos haveria de educar a todos com a grandeza de sua mensagem”.
Para mim, não há nada mais definitivo do que isso.
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Êta newsletter dada de saborosa e gostosa de ler! Você, Van, tem traçado o rumo das minhas leituras. A Conceição Evaristo virou coisa chique de se ler hoje em dia. Mas a jornada dela não foi nada fácil, não. Ela, felizmente, conseguiu romper a bolha das mulheres negras condenadas à invisibilidade e à pobreza do serviço doméstico. Agora, cá entre nós, os textos dela são lindos demais da conta. Outra coisa, eles trazem histórias de vida assentada no piso bruto e batido do chão. Por isso, são "escrivivências". Eu gosto das prosas dela. Mas as poesias da Conceição Evaristo são de arrepiar.
E pensar que estive ao lado dela e não pode autografar meu livro.