Olá, leitora. Olá, leitor. Tudo bem com vocês?
Sim, começo esta News pedindo desculpas já no título, por não ter escrito nas últimas semanas. Faltou-me forças, fiquei paralisada, me peguei com uma dor profunda no peito, inconformada com as atrocidades que o mundo vem conhecendo dia a dia com mais esta guerra absurda entre Hamas e Israel, que criaram um conflito que não se estabeleceu por pessoas (palestinos e israelenses), mas por dois poderosos grupos políticos completamente egóicos. Essa dor somou-se aos horrores há muito divulgado e que vêm acontecendo na Ucrânia. Enfim, não vou contemporizar sobre os dois conflitos bestiais, há artigos e mais artigos sendo publicados diariamente para isso, mas impossível não sofrer e cair perplexa por ações tão desumanas.
Estava pensando justamente nisso, quando recebi a newsletter “Vou te falar”, da jornalista e escritora Carolina Ruhman Sandler ( voutefalar@substack.com ), na qual ela relata exatamente o que eu estava sentindo, a mesma perplexidade, o mesmo luto e a paralisia para cumprir seus compromissos literários. Obrigada, Carol, teu texto me deu forças para que eu escreva aqui, agora.
Em sua News, a autora parte do ditado “a arte salva”, para refletir: “Ela com certeza pode confortar nossas almas, mas não nos defende de mísseis, balas ou facadas. Não nos protege de sequestros ou terroristas. Depois dos ataques brutais do dia 7 de outubro, passei por uma crise com a arte”, nos diz Carol.
E conta que só depois de algum tempo em reclusão, conseguiu cumprir um compromisso marcado há tempos com algumas amigas de ir ao teatro, não sem antes se culpar e se amaldiçoar de diversas formas, para, ao final, voltar para casa um pouco mais leve. “A guerra segue doendo demais aqui e eu vou retomando aos poucos a minha rotina de escrita. Mas voltei a ler, bem aos poucos. Uso o gerúndio para mostrar que este é um trabalho em construção. Vou me encontrando em meio aos escombros e construindo uma nova pele”, diz ela.
Me emocionei com esse desabafo e postei um comentário na News de Carol (desculpe-me o textão, amiga). Expliquei para ela que também estou voltando a ler aos poucos. E, exatamente para amanhecer o dia de hoje, terminei de ler A Corneta, de Leonora Carrington. E assim como foi a peça que assistiu, Carol, este livro foi como um bálsamo para mim.
A corneta
O título do livro já me causou surpresa. Engana-se quem pensa que A corneta em questão é o instrumento de sopro que emite altos sons. Ao contrário, é um acessório auditivo, que a protagonista, Marian Latherby, uma senhora de 92 anos, recebe de presente de sua melhor amiga para resolver sua surdez. O título original em inglês, na verdade, é The Hearing Trumpet, que no sentido literal já indica aparelho para audição, mas a tradução ficou tão irônica ao subverter o seu conceito, que já gostei.
Único romance da pintora, dramaturga e escritora Leonora Carrington, A corneta foi publicado em 1974 em francês e, em 1976, em inglês. Eu li a edição em português, publicada no Brasil pela Alfaguara este ano. O livro é considerado um clássico da literatura fantástica e surrealista.
A pintora e escritora Leonora Carrington, que nasceu na Inglaterra em 1917 e morreu no México em 2011, sempre buscou o inusitado e a ousadia em suas obras surrealistas. (foto divulgação)
Leonora
A autora foi uma artista audaciosa e revolucionária desde a juventude. Nasceu na Inglaterra em 1917 e, ainda adolescente, foi expulsa de dois colégios religiosos, sendo transferida para uma escola de artes em Florença. Ufa, que bom. O mundo ganhou com essas expulsões.
Um ano depois de ganhar de sua mãe um livro sobre a arte surrealista de Max Ernst, conheceu o artista e casou-se com ele. Tinha 20 anos então. Tornou-se pintora e foi reconhecida como a última das mulheres surrealistas do período. Te convido a pesquisar as imagens dos quadros dela, são fantásticos.
Sua vida foi tão intensa quanto marcada por terríveis fatos, como ter seu marido, Max Ernst preso em um campo de concentração pelos nazistas, ela ser confinada a um manicômio, fugindo posteriormente para a Espanha e depois México, onde passou o resto de sua vida. Foi feminista e uma das fundadoras do movimento de libertação de mulheres no país. Sua obra sempre trouxe o inusitado nas imagens femininas, carregadas de cor e ousadia. Morreu em 2011, aos 94 anos.
Mistura que dá certo
Em A corneta, ela mistura mitologia celta, criaturas mágicas, símbolos de tarô, com a religiosidade da cultura pré-hispânica e mexicana, num enredo onde a Marian é internada em uma casa para idosos e viverá situações que o leitor não saberá, até determinado momento, se são reais ou delírios da velha senhora.
Não é pouco, acreditem. Tudo isso com muita ironia, humor e, devo dizer, precisão. Nenhuma personagem, nenhuma situação ou palavra, por mais absurda que possa parecer, está ali por acaso. Marian viverá situações completamente míticas, das quais Leonora não poupa o leitor, a viagem de Marian a seu verdadeiro eu, a seu inferno, também é a nossa. A história de uma santa pintada em um quadro, permanentemente num piscar de olhos malicioso e inteligente, é a melhor e será essa criatura mítica que mudará todo o enredo.
Lá pelas tantas, uma série de eventos transformarão aquele local completamente, a casa irá ao chão, Marian e suas amigas, as únicas sobreviventes, vão encarar uma nova era glacial, terão seu reencontro com seres que se mostrarão fantásticos, encontrarão criaturas híbridas, humanos com cabeças de animais – a exemplo de tantos deuses míticos, e participarão do reflorescimento de um culto à Deusa.
A respeito da Deusa, a escritora polonesa Olga Takarczuk, Prêmio Nobel de Literatura de 2018, dirá em seu posfácio, publicado na edição de 2020 de A Corneta: “A Deusa é um arquétipo poderoso e sua existência é pura provocação a uma estrutura patriarcal”. Para Olga, esta é uma obra antes de tudo feminista, na medida em que Marion, que representa inicialmente a excluída da sociedade: primeiro como mulher; e depois na condição de mulher velha, vai vivenciar e comandar situações que questionarão e até derrubarão estruturas religiosas e patriarcais de poder.
Ri muito lendo A Corneta, refleti muito e me senti, como Carol, mais leve ao terminá-lo. Como disse o cineasta Luís Buñuel, “A leitura de A corneta nos liberta da triste realidade do cotidiano”.
Sim, foi da triste realidade desse doloroso cotidiano que estamos vivendo que A Corneta me tirou por vários momentos. Por isso te convido para a leitura da newsletter de Carol e do livro de Leonora. Quem sabe assim a gente possa sentir um pouco mais do calor do sol no dia de hoje, para emanar boas energias aos povos que tanto estão precisando.
Para encerrar
Trago aqui o recado de todos os meus encerramentos, você já sabe. Se gostou desta news, peço que a compartilhe. Me ajude a divulgar a literatura produzida por, para e sobre mulheres.
E vamos nos falar nas redes sociais, que você pode entrar por este link aqui:
linktr.ee/escritoravanessameriqui
Até mais.
O que está acontecendo no mundo é quase um Amargedon. Triste e doido. Eu me sinto impotente .
Tudo realmente muito triste mesmo!!! :( Mas adorei sua indicação de A Corneta!!